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Você já ouviu falar em preconceito linguístico?

Se você olhar para o mundo aí fora, ou até aqui pelo mundo virtual, vai se dar conta de que nem sempre (ou quase nunca) alguém fala exatamente da forma como a gramática prescreve. Isso porque, na verdade, a gramática (não apenas da Língua Portuguesa, mas de qualquer língua) é uma abstração. É como diz Oswald de Andrade em um poema: a gramática do professor e do aluno prescreve “Dê-me”, enquanto cotidianamente falamos “Me dá”.

É evidente que temos muitos falares, muitas formas de dizer e isso tudo é pluralidade, é riqueza. É assim que os estudos mais atuais têm compreendido a questão da variedade linguística: ela é expressão da diversidade cultural e de identidade dos falantes de uma língua. É igualmente evidente que entre as diversas variedades há uma ou outra que goza de prestígio, enquanto as demais são estigmatizadas, marginalizadas. Esse é o campo de discussão de interesse de quem aborda o preconceito linguístico.

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Mas você já parou para pensar nas possibilidades de uso das variedades? É isso mesmo. Como se poderia usar a variedade de modo produtivo? É isso que a literatura, desde o modernismo vem fazendo. João Ubaldo Ribeiro, importante romancista brasileiro, falecido no ano passado, disse certa vez em uma entrevista:

“Presto muita atenção na fala dos cariocas para quando escrever em carioquês não errar a mão. Carioca diz ‘Dá um cafezinho pra mim’. Na Bahia se diz ‘Me dê’. Aqui soa autoritário. Os cariocas falam: ‘A Fulana, o Beltrano’. Isso é um tapa no ouvido do nordestino. No Nordeste todo mundo fala direto ‘Fulana, Beltrano’, sem usar o artigo. Quando vou para Itaparica, entro na língua de lá, ‘como’ todas as proparoxítonas. Falo padre Ciço, não padre Cícero – Cícero é só para gente culta”.

Nessa fala, o escritor deixa clara a importância de prestar atenção aos modos de se falar, a fim de melhor reproduzir (“não errar a mão”) o jeito de dizer de alguma região. Em seus romances, um carioca deve falar como carioca, um baiano como baiano. Pode parecer simples, mas é necessário todo um esforço para que isso se realize e não foi fácil fazer com que o falar cotidiano fosse incorporado à literatura. Durante muito tempo se entendeu que a literatura deveria se dedicar a uma linguagem sofisticada – daí você sempre encontrar exemplos literários em gramáticas. A literatura consagrava a norma.

As primeiras tentativas de integrar à literatura uma linguagem mais “brasileira” se deram no nosso Romantismo, em seu projeto de busca da nacionalidade do país recém independente. José de Alencar, por exemplo, experimentou uma tupinização do português, tentando evitar o lusitanismo. Porém, o português tupinizado se restringia em seus romances, como O Guarani, ao índio e mesmo assim essa expressão era também uma abstração, ninguém na realidade falava assim. O narrador mesmo continuava a usar a linguagem da norma. Foi preciso muito tempo e um esforço modernista (Lembra do Oswald, de quem falei acima?) para efetivamente absorver o falar cotidiano como matéria da literatura. Sobre isso, eles chegaram a escrever poesias, além de incluir o tema em manifestos.

A corrente de renovação da linguagem na literatura abriu caminho, por exemplo, para Guimarães Rosa escrever esse trecho que vem abaixo. Leia, procure entender, pelo contexto, o significado das palavras que não conhece e perceba a beleza que é quando um autor usa o falar de um lugar a favor da literatura. Não se trata – longe disso – de renegar a gramática e/ou a norma culta, mas de saber que a variedade pode sim ser literária.

“Nonada.  Tiros que o senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore, no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser se viu; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, essa figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, carão de cão: determinaram era o demo. Povo prascóvio. 3 Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas… Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão”.

(Guimarães Rosa)

Quer saber mais?

Você pode ler o livro Preconceito Linguístico, de Marcos Bagno.

Também vale a pena ler poemas como: “Invernáculo” (Paulo Leminski); “Canção do Exílio” (compare a de Gonçalves Dias com a de Murilo Mendes); “Aula de português” (Carlos Drummond); o modernista Juó Bananeri, que reproduz a fala de imigrantes e muito mais coisa.

Sucesso com os estudos!

Professor Bruno

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