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Aleijadinho – as mãos feitas de almas do povo

“A característica de Aleijadinho está expressa no olhar, nos olhos amendoados, nos lábios negros, carnudos, no trabalho de movimento das mãos. É uma dança. Se você observa uma obra do Aleijadinho e fica com olhar fixo é como se ela estivesse movimentando. Como se ela estivesse dançando.”

Francisco Lisboa deixou obras de relevância reconhecida para a humanidade que hoje ficam expostas sem o cuidado de uma Monalisa ou Capela Sistina. Mesmo assim, aguçam os sentidos de homens e mulheres que fitam as figuras dos Passos da Paixão, dos Profetas de Bom Jesus do Matosinho, ou da Igreja de São Francisco de Assis. Construiu sua carreira em Vila Rica e nas outras cidades que se beneficiaram do turbilhão cultural advindo com o ouro e diamante saído das minas repletas de escravizados. Músicos e artistas em geral, maioria negros entre os de excelência, procuravam os ares da urbe mineradora. A beleza do barroco à mineira tinha sangue africano.

O dom de libertar santos de quartzito, madeiras ou pedra-sabão, construir altares, chafarizes, igrejas, e outros pedidos que atendeu até o seu descanso, bem idoso, foi a sua benção para a imortalidade. A grandiosidade dessa missão, que interpretava como divina, pesou-lhe os ombros durante a vida. Filho do mestre de obras português Manuel Francisco Lisboa com Isabel que, na época da gravidez, era uma de suas escravizadas, ele nasceu mulato no mundo dos brancos da sociedade mineradora do século XVIII. Embora os pretos e mestiços fossem a maioria da população, a discriminação com os africanos e seus descendentes era institucionalizada na escravidão e no preconceito diário.

As marcas da violência ao povo negro dessa sociedade da América Portuguesa não largaram a mente do artista. Levou os fenótipos de sua gente a transcender a América do Sul. Hoje, o mestre Antônio Francisco Lisboa (aprox.1738-1814), que inundou as cidades do ouro de Mariana, Sabará, Congonhas, São João del-Rey e Vila Rica (Ouro Preto) com artes sacras de valores únicos ainda carece do devido reconhecimento. O mundo do samba o homenageou. O G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro adotou a sua trajetória como enredo em 1961, resultou em segundo lugar, atrás da G.R.E.S. Estação Primeira de Mangueira[I]. O pintor Raimundo Nogueira disse “com Aleijadinho, até eu”[II].

Hernâni Donato, em seu romance biográfico de Aleijadinho de 1972, o eternizou explicitando através das letras o paradoxo da exuberância e sofrimento do artista[III]. Seis anos depois, Joaquim Pedro de Andrade lança um documentário com a narração de Ferreira Gullar reservando lugar para Lisboa entre o hall dos maiores brasileiros[IV]. O filme, dirigido por Geraldo Santos Pereira em 2003[V], enfatiza o aspecto da brasilidade da obra de Aleijadinho, exemplar tupiniquim do Barroco ou Rococó europeu dos setecentos, que, assim como os renascentistas e a Bíblia, lhe serviram de inspiração. O Museu de Ciências (USP) desenvolveu um tour virtual pelas suas obras e reúne documentos e artigos sobre o artista[VI].

Muito pouco. Impossível um nome desse valor continuar silenciado devido ao racismo acadêmico e estrutural cristalizado nas instituições brasileiras. Mais pesquisas devem surgir sobre suas articulações e relações desenvolvidas durante sua trajetória em nossas universidades. Devemos contar sua história para nossas crianças como luz em tempos de intolerância religiosa e cultural. Uma vida cheia de fé, amores, sofrimentos, traumas e perfeição: “se a alma não lhe escorresse pelos dedos, passando a animar a carne esculpível da pedra ou madeira, não haveria obra de arte”[VII]

aleijadinho foto congonhas mg
Foto tirada pelo autor em viagem a Congonhas (MG) em 2011. Uma das cenas dos Passos da Paixão, em opinião bem pessoal, conjunto que foi sua obra prima.

Da vida boêmia e agitação noturna dizem ter pego a doença que foi lhe consumindo a virilidade e a saúde. Viveu se achando um mostro. Tinha vergonha da sua estética e maneira de andar. Posteriormente, também, do seu falar devido à paralisia facial. Nada o parou. Carregava as almas do povo das minas em suas mãos julgadas pela sociedade. Aleijadinho libertava as figuras sacras das pedras e madeiras. Não as esculpia. Chamava-as para dançar.

[I] “Com a arte escultural/ Foi o marco inicial da escultura nacional/ Projetando o Brasil/ No conceito mundial” Vida e Obra de Aleijadinho, composição de Juca, Duduca e Bala, samba-enredo da G.R.E.S. Acadêmicos do Salgueiro no desfile em 1961. Segundo lugar, atrás da campeã G.R.E.S Estação Primeira de Mangueira.

[II] CABRAL, Sérgio. As Escolas de Samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora Lazuli, 2012.

[III] DONATO, Hernâni. Aleijadinho: o rio do tempo. São Paulo: Círculo do Livro, 1976.

[IV] O Aleijadinho, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade e com narração de Ferreira Gullar, lançado pela EMBRAFLME em 1978, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=dSjfCjK64ew (Último acesso em 28/07/2017)

[V] Aleijadinho: Paixão, Glória e Suplício, dirigido por Geraldo Santos Pereira, lançado pela G. Minas Produção em 2003. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L1F3771qtGE (Último acesso em 27/07/2017)

[VI] Mostra Explorando os 12 Profetas de Aleijadinho: uma visita em três dimensões, projeto do Museu de Ciências da USP, disponível em: https://200.144.182.66/aleijadinho/proposta/ (Último acesso em 27/07/2017)

[VII] DONATO, Hernâni, Op. Cit., pág. 248.

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